'Mais de 50 anos depois, aquilo não serviu de lição', critica Mauro Ventura. Em 1961, mais de 500 morreram em Niterói; em Santa Maria, já são mais de 233.
Logo depois da notícia do incêndio na boate em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, que deixou mais de 230 mortos na madrugada deste domingo (27), o telefone do jornalista Mauro Ventura começou a tocar. Ele é autor do livro “O espetáculo mais triste da Terra”, lançado no fim de 2011, que lembra outra tragédia semelhante, ocorrida em 1961 em Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e é considerada a maior da história do país. Em 17 de dezembro daquele ano, mais de 500 pessoas, sendo 70% crianças, morreram após o fogo se alastrar pelo Gran Circo Norte-Americano.
"É lamentável constatar que mais de 50 anos depois aquilo não serviu de lição, que a gente continue perpetuando os mesmos erros”, diz Ventura, em entrevista ao G1, sobre as falhas que causaram tantas mortes. “Um dos meus objetivos do livro, mesmo que ilusório, era mostrar o que aconteceu para que o fato não se repetisse. Lamentavelmente, não se pode falar em fatalidade. É uma sucessão de erros, imprevidências, negligências.”
O escritor fez mais de 150 entrevistas, com vítimas, sobreviventes e parentes, durante dois anos e meio. Ele conta que, apesar de não ter saída de emergência nem extintores, e de ser coberto com uma lona altamente inflamável, o circo possuía alvará de funcionamento,ao contrário da boate Kiss, em Santa Maria.
Enquanto na Kiss, o principal indício é de que um show pirotécnico teria dado início ao incêndio, o que caracterizaria um crime culposo (quando não há a intenção), em Niterói o fogo foi criminoso, segundo as invetigações. Um ex-funcionário, Dilson Marcelino Alves (Dequinha), então com 20 anos, teria sido ajudado por dois homens para provocar o incêndio por vingança, após ser demitido e chamado de "preguiçoso".
“Naquela época não tinha saída de emergência, tinha uma única que era obstruída por grades retiradas no fim do espetáculo. Como não havia acabado, ninguém conseguia sair. Não havia extintor, a lona era altamente inflamável. Chegaram a dizer que era uma armadilha mortal. A lona era de algodão e passaram parafina para evitar que a água da chuva penetrasse. O fogo levou menos de 10 de minutos para se alastrar.”
Entre os mortos (503, segundo a prefeitura, na época, mas o número é contestado), havia queimados, pisoteados e asfixiados. “A saída foi apelidada de corredor da morte”, lembra Ventura.
Entre muitos parentes com os quais conversou, o jornalista conta que apenas para a alguns a tragédia foi superada, e que outros vivem intensamente a dor até hoje. O próprio escritor revelou que se aprofundar no tema deixou marcas. "Cada um lidou com a dor da sua maneira. Teve gente que conseguiu de forma melhor, com alegria de viver impressionante. Outros até hoje não conseguiram se recuperar emocionalmente. Realmente foi muito doloroso ficar ouvindo a história de gente que perdeu todo a família. E em vão, mais de 500 pessoas morreram e não aprendem", lamenta.
Sem punições
Mais de 50 anos depois, nenhum dos parentes das vítimas foi indenizado, segundo o escritor, e apenas os supostos autores do fogo criminosos — por muitos considerados "bodes-expiatórios" — foram presos. O dono do circo, Danilo Stevanovich, ficou solto, voltou a trabalhar com circo e a família até hoje segue no ramo.
"Na época não tinha cultura de se formar associação de vítimas. Ninguém entrou com processo. Um dos motivos era porque achavam que o circo era americano. Ninguém foi punido. Nem o dono do circo, que até retomou o circo anos depois".
O incêndio ocorrido na madrugada deste domingo na boate Kiss, em Santa Maria já deixou pelo menos 232 mortos, segundo a Brigada Militar. O resgate dos corpos no local da tragédia foi concluído no final da manhã. Pelo menos outras 131 pessoas ficaram feridas e foram levadas para atendimento em hospitais da região. Mais cedo, a polícia havia dito que 245 pessoas haviam morrido na tragédia, mas o número foi corrigido no início da tarde.
Segundo informações preliminares, o fogo teria começado por volta das 2h30, depois que o vocalista da banda que se apresentava teria feito uma espécie de show pirotécnico, usando sinalizador. As faíscas teriam atingido a espuma do isolamento acústico no teto da boate e iniciado o fogo, que se espalhou em poucos minutos.
O incêndio provocou pânico entre os presentes, e muitas pessoas não conseguiram acessar a saída de emergência. Coronel Guido, comandante do Corpo de Bombeiros, disse que algumas pessoas presentes na festa relataram que seguranças da boate trancaram a porta de saída durante o incêndio.
"Vi as pessoas amontoadas e mortas perto da saída", disse o coronel. "A maioria das pessoas acaba morrendo por asfixia, inalação da fumaça tóxica. Queimados mesmo ali foram poucos. O que matou foi o pânico, a inalação da fumaça tóxica e a dificuldade em sair".
Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/01/autor-de-livro-sobre-incendio-de-circo-em-niteroi-rj-lamenta-tragedia-no-rs.html